UM FANTASMA RONDA A UNIVERSIDADE
- Alipio DeSousa
- 27 de mar. de 2008
- 5 min de leitura
Alípio de Sousa Filho
- professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN

As universidades federais já foram ameaçadas de morte de mil maneiras. É verdadeiro que, em diferentes ocasiões, por idéias surgidas em seu próprio interior. Novamente, voltam a ser ameaçadas e, desta vez, por um perigoso populismo governamental, determinado a estigmatizar o conhecimento teórico como “inútil” e aqueles ocupados com a produção desse conhecimento como “descomprometidos com o povo”. A aula inaugural proferida pelo ministro da educação, o professor Cristóvão Buarque, no dia 24 de abril, na UFRN, não deixa dúvida a esse respeito.
Não é nova (e não é de esquerda!) a ideia de que a universidade, qual uma torre de marfim,
abriga intelectuais diletantes, sem preocupação com os “problemas concretos da sociedade”. A ideia de que os professores e pesquisadores se isolam no interior das universidades públicas, por elitismo e intelectualismo, tem encontrado muitos partidários e assume diversas versões. A versão de direita já formulou sua divisa: Universidade Aberta. Empresários e conservadores construíram e difundiram a ideia de que a universidade pública é “dispendiosa”, “improdutiva”, “incapaz de se abrir às demandas da sociedade” (leia-se, interesses específicos de classe), “fechada às mudanças”, “inadaptada aos novos tempos”. Esse discurso permitiu, dentre outras coisas, o nascimento das imitações de universidade que são algumas das escolas particulares de ensino superior em funcionamento no país. No projeto de direita, o que se visa é fazer da universidade pública uma agência de prestação de serviços (ao mercado, ao Estado) ou de formação de agentes dessa prestação de serviços ou ainda uma mera linha de montagem para o homem adaptado às sociedades que aí estão.
A versão de esquerda aparece agora num discurso governamental que, embora difira quanto aos objetivos que diz pretender, termina se somando ao discurso de direita e aos interesses de setores empresariais. Pretendendo despertar a universidade pública do sono elitista em que teria caído, o ministro Cristóvão Buarque sugere que os professores e estudantes “saíam da universidade para um encontro com o povo”, ocupem-se com assuntos que apontem “soluções concretas para os problemas vividos pela população”. Embora todo o apelo em nome do povo, esse discurso do ministro – e, ao que parece, de outros setores do governo – não é de esquerda. Merece ser chamado pelo seu verdadeiro nome: populismo. No fundo, uma ideia reacionária, ocupada em combater uma das mais belas criações humanas, as universidades e a liberdade que, malgrado tudo, nelas se respira. Centros voltados para a produção do conhecimento sobre a natureza, a vida, o homem e a história, as universidades são lugares onde, se se pretende que cumpram seu destino, somente pode reinar a mais radical e laica liberdade de pensar. O poder não pode pretender impor à universidade qualquer orientação do pensamento. O conhecimento teórico – como crítica, esclarecimento, informação, tecnologia, saberes – por si só serve à emancipação social e humana, sem que professores e estudantes tenham que deixar as ocupações do estudo, da pesquisa e da reflexão contínuas para a ocupação com os chamados “projetos sociais”, com a “extensão”, etc., como se somente através da via do “contato direto com o povo” a universidade concretizasse seu compromisso social. O benefício social da universidade é sua própria existência como lugar da produção e do ensino do conhecimento. Desde o seu surgimento no século XII, uma história das universidades no mundo comprova que o conhecimento nelas produzido quase sempre se confrontou com as verdades oficiais aceitas e com os poderes dominantes. Sendo também conhecido que, no Brasil, as universidades públicas são responsáveis pela produção de um conhecimento teórico sobre a sociedade brasileira que, dentre outras coisas, tornou possível a crítica aos discursos ideológicos de invalidação do povo e do popular, o que muito certamente serviu a processos como o que resultou na recente eleição de um operário para o cargo de presidente da República.
Esperávamos do novo ministro, pela função que ocupa, que ele se engajasse não na estigmatização mas na valorização das universidades federais, o que pode ser assumido pelo ministro através de alguns gestos. Lutando por mais recursos para o ensino superior, sem a retórica populista segundo a qual “prioritário é o investimento no ensino fundamental”. Combatendo as desigualdades regionais, reproduzidas no campo científico com os mesmos métodos que vemos ser praticados em diversos campos. Adotando medidas concretas para livrar a pesquisa e o ensino de pós-graduação de políticas duvidosas e ingerências externas como as que são praticadas pelas agências de fomento e seus comitês. Estes que, a pretexto de avaliarem a pesquisa e os cursos de pós-graduação do país, transformam o poder do qual se investem em instrumento para a perpetuação dos privilégios de “clãs intelectuais” dos quais, além de colegas-amigos, seus próprios integrantes fazem parte: o que se realiza por meio do teatro sórdido das “comissões científicas”, “comitês de área”, que se escondem atrás de “critérios objetivos” duvidosos para a conceituação de cursos, produção intelectual, veículos de divulgação (revistas, livros, etc.), utilizados como critérios para a distribuição de dinheiro e bolsas e para a montagem de ranques também duvidosos. Odiosas práticas de reprodução de desigualdades, conservadas com a cumplicidade de professores que, participando dessas comissões, defendem a legitimidade de mecanismos que sabem apenas servir para a manutenção dos interesses de uma canalhocracia intelectual bem instalada, que tomou de conta dos recursos para pesquisa nas universidades, sem que se tenha visto qualquer resistência ao fato. Até aqui, nem ministros, nem reitores, nem professores esboçaram qualquer reação. Aliás, aqui como em outros casos, a frase de Eduardo Galeano soa como uma advertência: “Temos guardado um silêncio bastante parecido com a
estupidez”.
A ameaça populista deve nos fazer voltar a ler o pensador alemão Karl Jaspers, para lembrar que, se a universidade deixa de cumprir a missão para a qual existe, a sociedade e o Estado naufragam com ela. Voltar a ler também Schopenhauer para lembrar que, na universidade, para a produção e o ensino do conhecimento e da verdade, a atmosfera de liberdade é indispensável. Toda exigência – tenha ou não a forma da chantagem do poder – de que a universidade deve deixar de se voltar para os fins para os quais existe, devendo assumir “missões conjunturais”, “campanhas sociais”, dever ser vista com desconfiança por aqueles que desejam assegurar a preservação da ideia de universidade.
Mas, ao que parece, o populismo será a tônica das orientações do novo governo do país em
todas as áreas e já começa a ser, de modo oportunista, incorporado por diferentes segmentos sociais. Compare-se o assunto aqui tratado com o das artes. Integrantes do governo e empresários falam de “contrapartida social” para o financiamento de obras artísticas. Os artistas e produtores culturais já começaram a reagir. Conhecemos da história o que significa a exigência de “arte engajada”: arte pobre, reproduzindo doutrinas políticas também pobres. Não custa, logo mais, estaremos ouvindo alguns integrantes do novo governo falando em “universidade popular”, “ciência proletária”, “arte proletária”: será o projeto do Proletkult petista. Que o populismo que nos ronda seja apenas um fantasma e que não acordemos do sono elitista, do qual o ministro nos acusa, numa manhã de chuva em que a universidade estará transformada num grande Projeto Rondon. É tempo de rebelião!
(Publicado em SOUSA FILHO, A. . Um fantasma ronda a Universidade. Diário de Natal, Natal/RN, p. 2 - 2, 22 maio 2003.)
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