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Intervindo no Debate Político-Público

QUALQUER MANEIRA DE AMAR VALERÁ...

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 27 de mar. de 2008
  • 5 min de leitura

Alipio de Sousa Filho

- professor do Departamento de Ciências Socais da UFRN




23 de junho. Noite de São João. Noite de festa. Sanfona, zabumba e triângulo faziam uma música alegre... casais enfileirados já se mexiam: começava uma quadrilha. O marcador, jovem, vibrante e aos gritos, incitava os presentes a formarem novas duplas, mas repetia, insistentemente: "aqui, pode tudo; só não pode homem com homem e mulher com mulher". A frase, tantas vezes repetida, chamou-me a atenção e a de amigos com quem passava a noite. Entre eles, uma amiga, psicanalista, com quem passei a fazer humor com o marcador: o assunto parecia incomodar demais o jovem rapaz. A frase dele lembrou-me também a canção de Tim Maia, que todos lembram: "vale tudo... , só não pode dançar homem com homem, nem mulher com mulher".


28 de junho. Dia Internacional do Orgulho Gay. Data celebrada em diferentes países, com manifestações nas diversas cidades: atos públicos, comícios, shows. Nessa ocasião, diferentemente, não se ouve frases como essas que (ou)vimos acima. Em vários pontos do planeta, nessa data, a palavra de ordem é uma só: abaixo o preconceito! Pode sim!, homem com homem e mulher com mulher. E pode porque se trata de direito inquestionável e que não se pode negar a ninguém: o direito à liberdade de escolha. Esse é direito que se aplica ao amor e à sexualidade do mesmo modo como se aplica a outros assuntos. Princípio da Declaração Universal dos Direitos do Homem, "todo homem é livre"...


No preconceito, quando temos "homem com homem" ou "mulher com mulher", temos os homossexuais - palavra atirada a todos aqueles que, dentro do direito à liberdade de escolha, constroem a afetividade e a sexualidade que são suas fora dos padrões socialmente impostos como os únicos a serem seguidos. Como se sabe, essa é palavra-estigma (assim como gay, lésbica, etc.) que termina por reduzir os assim chamados homossexuais a um único rótulo que se lhes atribui. No preconceito, depois que se impinge a alguém o rótulo de homossexual, não é preciso dizer (conhecer, pensar, saber...) mais nada: homossexual - "ele é homossexual" ou o "ela é lésbica" - passa a ser, como uma sombra, a identidade social de todo aquele que - ainda que pintor, poeta, músico, professor, médico, advogado, pedreiro, policial, ministro, deputado, vereador, etc. – constrói suas relações afetivo-sexuais com pessoas do mesmo sexo. Escapar a esse estigma tem sido a razão pela qual muitos mantêm escondidas suas escolhas nos campos do amor e da sexualidade e outros tantos conservam reprimidos afetos e desejos sexuais. (E também razão pela qual, em nossas cidades, notadamente no universo masculino, muito se pratica uma sexualidade paralela à sexualidade oficial em tudo semelhante ao que o sociólogo francês Michel Maffesoli chamou de uma "socialidade subterrânea".)


Somente a ignorância do preconceito leva a que se estigmatize pessoas – às vezes com os

maiores insultos - pelo afeto e pela sexualidade que praticam. Não fosse o preconceito, fortemente conservado no imaginário social, mulheres e homens passariam despercebidos em suas escolhas afetivo-sexuais. É, pois, pelo fim do preconceito – que impõe a confissão, a revelação e a denúncia – pelo que lutam todos aqueles contra quem se atira o estigma de homossexual, bem como essa é também a luta daqueles que se engajaram na construção política de uma sociedade verdadeiramente democrática. Assim como nas famílias, nas escolas, nas igrejas, na imprensa, etc. não se comenta (não se quer saber, não se pergunta, não se revela) que alguém seja heterossexual, o que todos aqueles que lutam contra o preconceito buscam é o estado de sociedade em que não mais se tenha a obrigação de confissão da homossexualidade – seja como "culpa", "vergonha", "pecado", "desvio", seja como revelação de "segredo familiar" ou "entre amigos" – e o rótulo de homossexual como identidade social que limite a vida de seres humanos, iguais em sua humanidade a todos os outros, mas que são constrangidos a viver como uma espécie à parte; constrangimento que produziu a idéia – reacionária! - segunda a qual a homossexualidade seria de "origem genética". Idéia que já fez adeptos mesmo entre grupos e ativistas do movimento em defesa dos direitos dos homossexuais no Brasil e em outros países.


Não se pode mais continuar admitindo que o preconceito limite a expressão da vida. As pessoas que, por razões de escolhas e preferências, têm suas histórias alteradas pelo peso de uma única palavra o que experimentam é um tipo de constrangimento que limita a vida. Uma das idéias mais preconceituosas que se lança contra homens e mulheres a quem se atira o estigma de homossexuais é a de que estes "ameaçam a família e a moral". Naturalmente estamos aqui diante do pensamento conservador e de seus termos, que se pretendem expressão de realidades fixas e intocáveis. O que esses termos escondem é que existem famílias e que a moral não tem valor absoluto, é sempre moral de um grupo ou classe, época ou sociedade determinadas. Contra a moral dominante, é preciso que se diga que os "homossexuais" também constróem suas famílias: têm lares, moram sob o mesmo teto, adotam filhos, têm amigos, saem de férias. Casais de homens ou de mulheres vivem juntos muitos anos: três, seis, dezessete, vinte e cinco, cinqüenta anos. Compram juntos carros, casas, apartamentos. Brigam e fazem as pazes como qualquer casal. E também se separam. O amor e o sexo entre dois homens, como entre duas mulheres, são resultados do desejo, e este é o mesmo – e tão legítimo como! – desejo que promove o amor e o sexo entre um homem e uma mulher, e são também obras de amizade e de ternura. O que se tem feito, até aqui, conservando-se o preconceito, é fazer sofrer um grande número de pessoas que poderia viver mais feliz não fosse a estigmatização; sendo muitos aqueles que gostariam de partilhar com pais, irmãos e colegas sua vidas, seus problemas, suas alegrias, seus sonhos.


Por que continuar reproduzindo o preconceito anti-homossexual na educação familiar e escolar e através das religiões? Por que continuar com o fazer de conta social que insiste em negar a homossexualidade e a bissexualidade masculinas e femininas enquanto expressões da sexualidade humana e também entre os brasileiros? Por que manter afastado das conquistas da cidadania um amplo segmento da sociedade constituído de cidadãos plenos?


Ao que parece, foram essas questões que motivaram políticos e parlamentares, em diferentes países do mundo, a defender mudanças nas leis, acabando com o amparo legal do preconceito. No Brasil, iniciativas como as dos vereadores e deputados do PT em nível local e nacional são exemplos do esforço na política para livrar o Brasil do preconceito infundado praticado contra aqueles a quem se lança o estima de homossexuais. Entre todas as iniciativas, o projeto apresentado na Câmara Federal pela então deputada Marta Suplicy – agora retomado e modificado pelo Deputado Roberto Jefferson –, que, entre outras coisas, reconhece as uniões de pessoas do mesmo sexo, é sem dúvida o projeto de maior expressão política no tratamento do tema.


O curioso preconceito que diz "vale tudo", "pode tudo" – certamente vale a desigualdade, a miséria, a fome, o racismo, a corrupção política, a violência policial, etc. – "só não pode homem com homem, nem mulher com mulher"... deve ser combatido de todas as formas. Direito pela metade é democracia pela metade! Os homossexuais, pois!, têm direito à cidadania plena. É urgente o fim do preconceito e seu amparo na lei, única maneira pela qual se pode construir o espírito democrático nos indivíduos e a cultura da democracia na sociedade brasileira. Estaremos assim construindo o futuro, e este como queremos vivê-lo: um futuro em que, como anuncia a canção, "qualquer maneira de amar valerá..."


Publicado em SOUSA FILHO, A. . Qualquer maneira de amar valerá. Dito e Feito, Natal/RN, v. 3, p. 29-31, 2001. (Gabinete do Deputado Fernando Mineiro - PT)

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

© 2018, Sabrina Barbosa/Alipio DeSousa Filho.

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