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Intervindo no Debate Político-Público

PODE A DEMOCRACIA SER CONSTRUÍDA SEM OS “HOMOSSEXUAIS”?

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 27 de mar. de 2008
  • 8 min de leitura

Alipio de Sousa Filho



No próximo dia 28 de junho, em vários países, comemora-se o “Dia Internacional do Orgulho Gay”. Pode-se não gostar da maneira como se chama este dia de passeatas e assembleias públicas – existem mesmo aqueles que não admitem as próprias manifestações! –, mas se deve entender que há sentido na escolha da palavra “orgulho” para celebrar a data.


No mundo inteiro, pessoas são ainda vítimas de preconceitos absurdos - todo preconceito é absurdo! –, em razão unicamente das práticas afetivas e sexuais que adotam. É, portanto, legítimo a manifestação político-pública para denunciar estes mesmos preconceitos e, contra eles, apresentar o que certamente mereceria o nome de contradiscurso crítico do preconceito. Assim, o termo orgulho não deve ser compreendido senão como afirmação crítica de pessoas que, em razão de práticas afetivas e sexuais, são convertidas em sujeitos morais: os homossexuais!, classificados de todas as maneiras, variando da classificação religiosa à médica. A própria ideia segundo a qual se pode chamar alguém de “homossexual” porque estabelece vínculos afetivos e sexuais (ocasionais, temporários ou duradouros) com pessoa do mesmo sexo é já uma criação do preconceito. O mesmo se pode dizer dos termos gay, pederasta, invertido, lésbica, sapatão, etc. aplicados a homens e a mulheres. Estas não são simples palavras, elas são estigmas.


Esses são termos cuja origem somente se explica porque vivemos em sociedades preconceituosas que necessitam de palavras como essas (e outras) para discriminar e controlar comportamentos e pessoas. Ainda que circunstâncias da denúncia da discriminação e do preconceito obriguem o uso desses termos, convém que se adote uma atitude de desinvestimento no uso dessas palavras se queremos despreconceitualizar a sociedade e os indivíduos, pois, afinal, o que é ser "homossexual”?


O termo "homossexual" é recente na história. É uma criação do século XIX. Um termo médico. Termo criado como sinônimo de "perversão sexual". A psiquiatria irá dizer depois que se trata de "doença". Tudo isso continuação de uma mentalidade religiosa que representa a homossexualidade como pecado. Mas nem sempre foi assim na história. E, como podemos ver hoje, também não é coisa que permanece fixa: muitas são as transformações atuais que modificam a visão que se tem das relações entre pessoas do mesmo sexo. Até mesmo a legislação muda em diferentes países alterando o estatuto das uniões entre os chamados "homossexuais".


Mas, ainda nos nossos dias, a representação mais comum que se faz destes a quem se chama de “homossexual” é que são criaturas cuja vida se resume ao sexo. Assim, estas não seriam pessoas “normais” pois não são capazes de estabelecer vínculos, relações duradouros, constituir famílias, etc.


O caso da sociedade brasileira não é diferente de muitas outras no mundo, mas interessando aqui tratar de nossa sociedade, esta não pode continuar mentindo para si mesma sobre coisa que existe: as relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo, com durabilidade correspondente à das uniões entre pessoas de sexo diferente, as chamadas uniões heterossexuais. O número de pares de homens e o de pares de mulheres existentes na sociedade brasileira é infinitamente maior do que aquilo que o preconceito admite reconhecer e do que a hipocrisia tenta esconder. É igualmente assim em outras sociedades. O mundo inteiro tem os chamados pares homossexuais. E eles são amarelos, negros, brancos, ricos, pobres... não há onde situá-los, pois não formam uma espécie à parte.


Desse modo é importante que se denuncie o preconceito antihomossexual como se faz na ocasião do dia 28 e em outras ocasiões, assim como tem sido importante iniciativas como as de parlamentares e governos em diversos países e também aqui no Brasil e em Natal no sentido de garantir direitos até aqui negados aos ditos homossexuais.


O que se visa com o estabelecimento de lei que reconheça as uniões de pessoas do mesmo sexo é simplesmente garantir direitos que somente aos chamados heterossexuais são garantidos. A situação que temos, até hoje, é não somente um atentado à democracia, ela é principalmente uma profunda injustiça que se comete contra milhares de pessoas em nossa sociedade. Nada nos pares homossexuais os diferencia dos pares heterossexuais. O que fundamenta as uniões homossexuais é o mesmo amor que fundamenta a união entre pessoas de sexos diferentes. Os chamados heterossexuais não amam nem mais nem menos que os homossexuais. Nem o amor daqueles é diferente (superior, mais verdadeiro, mais divino, etc.) do que o amor destes. E quanto à querela (criada pelo pensamento conservador!) de ser ou não o projeto uma proposição de «casamento», ela somente revela o cinismo dos conservadores; sim, porque o casamento legalmente admitido entre homem e mulher, diga-se o que se quiser, é um contrato legal entre duas partes, que assegura deveres e direitos.


A Câmara dos Deputados examina projeto de lei da deputada Marta Suplicy (PT-SP) que propõe o estabelecimento do “contrato civil de parceria de pessoas do mesmo sexo". Além de sua importância cultural, a iniciativa da deputada é justa com os homossexuais. O que o projeto pretende é regulamentar situações existentes de fato.


As igrejas, quando pressionam a Câmara a não votar no projeto ora em discussão, não apenas atentam contra a democracia como entram em contradição com aquilo que dizem ser sua missão no mundo: difundir o amor. Pois bem, isso não pode se transformar em mentira. Mas é nisso em que se transforma quando, por preconceito, as igrejas excluem milhares de pessoas, com a ideia de que o amor somente existe nas relações entre homem e mulher (sendo que estes somente estarão “unidos no amor” se realizarem o chamado casamento religioso) .


Diga-se, ainda, as igrejas, quando se posicionam a esse respeito - assim como fazem com relação ao aborto, ao divórcio, etc. -, querem a adoção de posições religiosas pelo Estado, o que é contrário à natureza laica do Estado moderno e aos princípios da democracia. Mais: particularmente quanto à homossexualidade, as igrejas são hipócritas. Os dirigentes de todas as igrejas bem sabem que o amor (e o sexo) entre dois homens ou entre duas mulheres não somente é uma realidade na sociedade, mas também no interior de suas igrejas. O que aqui se diz não tem sentido de acusação; é identificação de uma realidade que deveria impedir que as igrejas fiquem por aí a difundir preconceito e a praticar discriminação, o que fere, aliás, a Constituição. (Ainda que a lei, no pais, não seja aplicada: pratica-se o racismo abertamente e mesmo Ministro de Estado vomita preconceito racista sem se perguntar sobre seu papel cultural na sociedade.) Os dirigentes das igrejas sabem que há padres homossexuais, pastores homossexuais, dirigentes espíritas homossexuais, assim como há freiras, leigos, etc., não sendo o fato desvio nem exceção. A existência de católicos, protestantes, espíritas, umbandistas, budistas, etc. que vivem em uniões estáveis constitui dado que as igrejas não podem ignorar. E há mesmo casais homossexuais que mantêm a prática religiosa, que não romperam com suas igrejas. Outros há que são ateus, como há heterossexuais ateus. A homossexualidade não pode, pois, continuar a ser vista pelas igrejas como vergonha e imoralidade, numa oposição ao que consideram sério e natural.


Outra instituição que também recusa encarar o assunto sem preconceitos são as Forças Armadas. Predomina no interior dessa instituição a ideia de que a homossexualidade atrapalha seu funcionamento. Uma ideia absurda, mentirosa e preconceituosa: ela faz acreditar que a existência do amor e do sexo entre dois homens ou entre duas mulheres põe em risco a disciplina e a hierarquia, dando também a entender que a afetividade e a sexualidade das pessoas se fazem reconhecer por traços de voz, gestos, idéias, etc. A representação segundo a qual a sexualidade pode ser classificada por sinais indicativos exteriores leva a muitos enganos e torna-se a base do preconceito.


Os homossexuais amam e são felizes como casais. É uma profunda injustiça dos dirigentes religiosos e militares condená-los a viver sob o estigma de que suas uniões são unicamente pautadas no sexo, como se, entre os homossexuais, não houvesse carinho, ternura, amizade, respeito, compromisso - enfim, tudo isso que compõe o amor. Do ponto de vista das concepções modernas de homem e de cultura, a exclusão de tantos que habitam o mesmo território é fato contrário aos direitos humanos; e, nesse caso, não se pode falar de democracia – que se dê a isso outro nome!


A prática do sexo dito homossexual não está confinada a supostos guetos nem é exclusiva de um tipo particular de gente. Todos os povos praticam a homossexualidade, inclusive os indígenas. Nas primeiras civilizações (como os sumérios, egípcios, gregos e romanos) já se praticava a homossexualidade masculina e feminina. A literatura, a filosofia, a antropologia, a história, a arte trazem importantes revelações a esse respeito. No Brasil, a prática da homossexualidade é comum, banal, freqüente; pratica-se a homossexualidade em todos os segmentos de classe, origem étnica, regiões, etc. – que se acabe de vez com a hipocrisia!


O sexo entre dois homens, como entre duas mulheres, dá prazer, é bonito, é terno, não importa se em encontros breves (como entre os heterossexuais) ou quando acontece no interior das uniões duradouras. Por que continuar o fingimento de que essa realidade não existe? Por que impedir o direito dos homossexuais à felicidade da vida a dois, quando assim desejam? Os homossexuais são felizes amando, senhores legisladores!, como os heterossexuais. Os homossexuais têm direito ao Direito; têm direito à cidadania plena. É urgente o fim da mentira e seu amparo na lei, única maneira pela qual se pode instituir o espírito democrático nos indivíduos e a cultura da democracia na sociedade.


Somente o mais ignorante dos preconceitos distingue as pessoas pelo sexo que praticam. Como se fosse possível reduzir alguém a um rótulo que se lhe atribui. Contra os homossexuais, freqüentemente, atira-se os estigmas de presos ao sexo, promíscuos, anormais, etc. Nas campanhas políticas, apela-se à ideia de moral. O pensamento conservador (porque não pode, pois se quebraria!) não diz até o fim aquilo que pretende. Mas o que reclama dos homossexuais é que estes aceitem a sociedade tal como existe, isto é, uma sociedade com profundas desigualdades, injustiças, misérias, etc. De sua parte, os homossexuais não estão mesmo dispostos à reproduzir sociedades que conservam a dominação, a opressão, o sofrimento, a infelicidade. Eles querem uma sociedade verdadeiramente democrática e justa; sem oprimidos, sem excluídos.


Uma das idéias mais preconceituosas que se lança contra os homossexuais é a de que eles

ameaçam a família; e com isso se faz campanha política e se vence eleições no país. Nada mais falso. Os homossexuais também têm suas famílias: têm lares, moram sob o mesmo teto, adotam filhos, têm amigos, saem de férias. Muitos vivem três, seis, dezessete, vinte e cinco, cinqüenta anos juntos. Compram carros, casas, apartamentos juntos. Brigam e fazem as pazes como qualquer casal. E também se separam. (Razão porque a posição da OAB, pela qual se afirma que a inexistência na Constituição do país de instituição que corresponda ao par homossexual torna o projeto «inconstitucional», soa estranha uma vez que se trata de entidade que tem a responsabilidade de contribuir com o alargamento da cidadania plena no país.) O que se tem feito, até aqui, conservando-se a hipocrisia e o preconceito, é infelicitar um grande número de pessoas que poderia viver mais feliz não fosse o preconceito; sendo muitos aqueles que gostariam de partilhar com pais, irmãos e colegas sua vidas, seus problemas, suas alegrias, seus sonhos.


O assassinato do vereador alagoano, em 1992, que se assumiu bissexual - sua morte tomou a forma simbólica de punição à sua ousadia! -, e o caso recente de São Gonçalo-RN, que resultou em mortes e suicídio por uma "acusação de homossexualidade" (vivemos em sociedades em que a homossexualidade é acusada, revelada, como se fosse uma mancha que se deve revelar!), são exemplos da violência a que os homossexuais estão submetidos. Mas também exemplo do preço que paga uma sociedade que pratica o preconceito, ignorando a democracia e o direito. O filósofo francês Michel Foucault estava certo: "Não haverá civilização enquanto o casamento entre homens não for admitido."


Não se pode esperar dos deputados outra atitude senão a aprovação do projeto da deputada Marta Suplicy. Estranho que deputados do PT questionem o projeto. O PT tem sido um dos partidos que mais têm contribuído para o estabelecimento da democracia no país; nenhum de seus integrantes e representantes pode se opor a essa tarefa. (E quanto ao governo, caberia um pronunciamento oficial apoiando o projeto, seguindo o exemplo do novo governo francês e do presidente dos EUA, que se pronunciaram em defesa dos direitos dos homossexuais em seus países.) Direito pela metade é democracia pela metade! O Direito inteiro aos homossexuais!


Publicado em SOUSA FILHO, A. . Os homossexuais e a democracia. Diário de Natal, Natal, RN, p. 2 - 2, 28 jun. 2000.

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

© 2018, Sabrina Barbosa/Alipio DeSousa Filho.

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