OS HOMOSSEXUAIS, A DEMOCRACIA E A CIDADANIA
- Alipio DeSousa
- 27 de mar. de 2008
- 4 min de leitura
Alípio de Sousa Filho

Foi notícia nacional: o presidente da república – FHC –, na solenidade do lançamento do Plano Nacional de Direitos Humanos, segurou a bandeira do movimento homossexual e defendeu o projeto de lei, apresentado ao Congresso Nacional pela ex-deputada Marta Suplicy, que assegura, aos homossexuais, direitos inexistentes na lei brasileira até aqui. Oportunismo?: certamente, não! A defesa dos direitos dos homossexuais é tema que não dá voto, bem ao contrário, tira voto. Nesse assunto, o que vale para a esquerda também vale para os governantes: quando políticos de esquerda ou políticos com funções de governo no mundo inteiro (Bill Clinton, Tony Blair, Lionel Jospin) se posiciona(ra)m a favor dos direitos dos homossexuais, procedem por convicção, não por oportunismo – ainda que também exprimam, enquanto políticos, um longo histórico de lutas dos próprios homossexuais no Brasil e no mundo. O presidente da república – aliás, diga-se de passagem, o primeiro do Brasil a tomar tal posição – fez defesa do projeto pressionado por uma verdade, apresentada repetidas vezes pelos homossexuais, e que nenhum presidente pode ignorar: no Brasil, os homossexuais são numeroso segmento social que continua fora do Direito, excluído da cidadania plena.
Para muitos, deve ter sido motivo de espanto ver o presidente da república tratar do assunto. Há sempre gente para dizer que existem outros assuntos, sempre “mais importantes”, para um governante se ocupar. Ora, essa é uma concepção atrasada do fazer político, não mais compatível com a realidade contemporânea. Porque se dispõem ao governo e à representação da sociedade, o Estado, os governantes e os políticos estão obrigados a formular respostas a todas as demandas – apresentadas pelos diversos segmentos sociais – que tratem dos direitos da cidadania. Nenhuma razão há para se hierarquizar essas demandas, dividindo-as entre “importantes”, “sérias”, “prioritárias” e outras como “sem importância”, “secundárias”. Tratando-se dos direitos da cidadania não há, objetivamente, fundamento para essa hierarquização, seja quanto ao teor de cada demanda, seja quanto a uma imaginária ordem de distribuição no tempo – a idéia de prioridade. Em que se fundamenta a idéia de que existem direitos que podem esperar? Exceto no preconceito dos criadores e aplicadores do Direito, e também de boa parte da sociedade, essa idéia não tem outro fundamento. E acrescente-se aqui que mesmo existem aqueles para quem não devem existir direitos como os que reivindicam os homossexuais: reconhecimento legal de suas uniões, direito a pensões, adoção, etc.
Como em nenhum outro momento, a palavra cidadania nunca foi tão usada no Brasil. Tornou-se slogan de administrações de prefeitos, governadores, transformou-se em tema de campanhas políticas. Logo virou palavra que não pode faltar no discurso de nenhum dos
políticos das elites que exercem a dominação no nosso país. Acrescente-se que, nesses casos, a cidadania tomou a forma do favor – desses políticos – que torna possível, aos mais pobres, o acesso a direitos básicos óbvios – moradia, saúde, educação, trabalho –, e tem sido limitada a apenas esses direitos, como se a vida humana se reduzisse às necessidades primárias básicas. Efeito dessa apropriação, o termo se desgasta e corre o risco de passar como uma moda que nossas elites souberam utilizar. É preciso, pois, por isso, contrapormos à idéia de cidadania como dádiva dos direitos básicos, assegurada pelos políticos das elites, uma outra idéia: a cidadania como estabelecimento dos direitos básicos mas ao lado de novos e ampliados direitos que, sendo conquistas, configurem um estado de cidadania plena para todos. No Brasil, a mudança do conceito de cidadania restrita (em geral, confiscada e manipulada pelas elites) para o de cidadania plena tem nos homossexuais um de seus agentes mais fortes e ativos. Hoje, entre todos os segmentos da sociedade brasileira, são os homossexuais que mais condições políticas reúnem para contestar a idéia de cidadania que tem sido veiculada – na prática, pelas manipulações de que tem sido objeto, um confisco e uma redução da cidadania plena verdadeira –, destacando-se aí o próprio fato de que os homossexuais têm sido o segmento que continuamente tem ficado fora do Direito brasileiro até aqui.
É preciso continuar denunciando a discriminação e a violência que sofrem os homossexuais, assim como é preciso continuar lutando para conquistar os direitos da cidadania plena, sem a qual será sempre incompleta a democracia no nosso país e no mundo. Em países como a França, Suécia, Dinamarca, Holanda, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos muito já se conquistou, embora reste ainda também muito a conquistar. Aqui, no nosso país, quase tudo ainda está por se estabelecer. Nesse sentido, as próximas eleições serão decisivas: a aprovação de leis favoráveis aos homossexuais dependerá dos parlamentares que elegeremos, bem como dos governantes que assumirão a direção do Estado. A eleição de candidatos comprometidos com a causa dos homossexuais é também importante para a mudança de mentalidade da sociedade.
De fato, a palavra do presidente FHC sobre os homossexuais deixa para os próximos presidentes um compromisso que não pode deixar de ser levado em conta: sua palavra torna-se mais que apenas a palavra de um político, é um compromisso do presidente da república. E isso deve ser entendido de uma outra maneira: o compromisso do Estado com a sociedade, do governante com o seu povo. O fato não pode ficar reduzido a um gesto isolado. Nas próximas eleições, todos os candidatos à presidência da república estão obrigados a se pronunciar sobre o assunto, assim como todos os políticos. Os candidatos aos cargos executivos ou legislativos, estaduais e federais, estão obrigados a falar sobre o assunto e a sociedade brasileira deve estar atenta ao que eles dirão. Do compromisso deles com o assunto, dependem também os avanços que a sociedade brasileira poderá dar no tocante à construção de uma cultura política de novos direitos, no que se incluem os direitos dos homossexuais. Estes, até aqui, discriminados pelo próprio discurso do Direito – o que constitui uma incoerência a superar: como entender um direito que deixa de fora numeroso conjunto de homens e mulheres unicamente por discriminação ao modo como estes homens e mulheres amam e exercem sua sexualidade?
Publicado em SOUSA FILHO, A. . Homossexuais e cidadania. Diário de Natal, Natal/RN, p. 2 - 2, 28 jun. 2002.
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