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Intervindo no Debate Político-Público

O ESTADO E AS IGREJAS

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 26 de mar. de 2008
  • 4 min de leitura

Alípio de Sousa Filho – professor do Departamento de Ciências Sociais




Diversas têm sido as ocasiões em que moradores de diferentes bairros da cidade são incomodados com barulhos de carros de propaganda, shows, sons de trios elétricos, etc. Fato novo, agora também as igrejas incomodam os moradores com um tipo de culto e festividades, no espaço público, que vêm se tornando verdadeiro tormento para aqueles que habitam nas proximidades dos locais escolhidos para essas atividades. O fato é estranho se considerado sob dois ângulos. Primeiro, o da própria religião. As religiões sempre nos pareceram uma atividade da ordem do silêncio. Nunca uma atividade do alarido histérico, inculto, apelativo, realizada sem diferença de cortejos carnavalescos de mau gosto. Segundo, o do governo da cidade. Até aqui, tudo tem sido feito com a cumplicidade da autoridade política, como se a cidade não tivesse governante público, laico, guardião do interesse de todos. Se pretende fazer jus ao seu título, o governante público não pode tolerar abusos que constituam violação dos direitos da comunidade, incluído aí os direitos daqueles que não professam crenças religiosas ou daqueles que não estão dispostos a perder o seu sossego em razão de desrespeitos às leis que regem a vida coletiva.


Se do ponto de vista sociológico torna-se possível compreender que as igrejas tenham trocado o silêncio pelo alarido, a serenidade da prece pela carnavalização que cai no ridículo, não se pode admitir que tal venha ferir direitos individuais e coletivos. De fato, o fenômeno da paganização das religiões é algo mundial e mostra bem que os dirigentes e mantenedores das grandes igrejas esconderam, por muito tempo, e por trás de suas palavras de domesticação dos fiéis, aquilo que verdadeiramente sempre animou os rituais religiosos: o desejo da comunhão orgíaca transformado em fé. Como bem demonstra o sociólogo francês Michel Maffesoli, o retorno contemporâneo do “eterno paganismo” é uma demonstração de que todos os deuses humanos – tenham o nome que tiverem – apenas servem para reunir os humanos na comunhão carnal de um desejo primário: o ser-com, o estar-junto, celebrativos da própria existência humana e do grupo que a acolhe, transfigurada em realidade “divina”. Bem antes, o fundador da sociologia, Émile Durkheim, já havia descontruido o caráter “divino” das religiões, revelando a natureza social do fenômeno religioso. Há ainda a acrescentar o fato de que, hoje, as religiões concorrem entre si como num “mercado de bens simbólicos” – para voltar aqui a feliz expressão do sociólogo Pierre Bourdieu. Vendem suas mercadorias como quaisquer outras empresas. E vende mais quem faz melhor sua propaganda, quem seduz mais com seus atrativos. Hoje, as grandes religiões não são mais do que produtos embalados para consumo, e não se escusam de enganar compradores inadvertidos, do mesmo modo como empresários inescrupulosos enganam consumidores. Como se pode constatar diariamente, oferecem falsas curas, falsas promessas de felicidade, falsas alegrias, falsas esperanças, todas manipulações do sofrimento e da miséria emocional alheia. Embora tantos já não queiram mais tratar do assunto sob esse prisma, juntaria aos autores citados, a sabedoria de Marx: “as religiões são o sopro da criatura oprimida, a esperança dos que não têm esperanças.” Ainda, convém ressaltar, o que se comemora com entusiasmo exagerado é porque já deixou de existir. A celebração de todo mito indica, de alguma maneira, que, para não perder sua eficácia, este precisa se reatualizar sempre. Que pensar de diferente sobre a exaltação da crença particular que se faz pública em camisetas, em autocolantes que vemos desfilar em carros na cidade, com imagens ou frases que falam de Jesus, Maria, salmos bíblicos, etc.? Mais que expressão do Kitsch, são sintomas da esterilidade das crenças.


Ocorre que as Igrejas, se têm o direito de realizarem suas atividades como queiram, que o façam no espaço que é delas e respeitando às leis que controlam a poluição sonora. Em suas propriedades podem fazer o que decidirem, mas não têm o direito – não podem ter esse direito! – de realizarem suas atividades no espaço público coletivo, ferindo todas as recomendações da lei sobre a intensidade do sons, assim como as áreas e os horários a ser preservados. Se já nos acostumamos as procissões, as missas campais e aos cultos em

estádios, legitimados pela freqüência popular e pela admissão do Estado, não se pode, da mesma maneira, admitir que igrejas invadam o espaço público para realizar atividades que perturbam o sossego de todos, incluindo aqueles que – com o direito que a Lei garante – não professam as crenças que essas mesmas igrejas apregoam ou que exercem atividades que exigem o silêncio, a tranqüilidade, ou que simplesmente querem estar em suas casas em paz de espírito.


O que temos visto acontecer em Natal, por ocasião de atividades como os cultos quase diários de certas igrejas, o Jubefest e agora o tal Francisfest, etc., atenta contra todos os princípios da convivência democrática e das regras do Estado de direito, por definição, laico e público. Nem mesmo os hospitais têm sido respeitados. Curiosamente, as tentativas de impedir os abusos cometidos por padres e pastores têm esbarrado na dificuldade de enfrentar “o poder” a eles atribuído, como se acima desse poder não existisse nenhum outro. É preciso que se diga, contudo, que somente existem padres e pastores poderosos onde o Estado e os poderes públicos são fracos. É urgente que, em Natal, o poder público atue no sentido de coibir esses abusos, sob pena de desmoralização como gestor da coisa pública e de não poder tratar de nenhum outro caso que implique também desrespeito aos direitos individuais e coletivos. Todo gestor público tem uma função educativa que lhe acompanha. Se não assume sua tarefa de educar a sociedade para o respeito aos direitos, que faz como gestor? Destaque-se aqui o esforço elogiável de promotores do Ministério Público que, neste assunto, como em outros, têm tido marcante atuação no sentido de promover o direito e a justiça. E para aqueles que apregoam que, ao lado dos padres e pastores, estão “Deus e a verdade”, porque com eles está o povo, que se diga que, em moral, em ética e em justiça, a verdade não está na quantidade.


Publicado em SOUSA FILHO, A. . O Estado e a Igreja. Diário de Natal, Natal/RN, p. 2 - 2, 24 set. 2003.

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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