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Intervindo no Debate Político-Público

O BRASIL NO DIVÃ

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 26 de mar. de 2008
  • 3 min de leitura

Alípio de Sousa Filho

– professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFRN




O discurso lido por Lula, por ocasião de sua posse como presidente da República, trouxe uma imagem que merece que se reflita sobre ela: “hoje é o dia do reencontro da sociedade brasileira consigo mesma”. A idéia não pode passar despercebida ou enquadrada como mera peça de retórica. Ela tem o sentido profundo de fazer pensar sobre o caso de uma sociedade que, até aqui, sempre negou a si mesma, porque sempre negou o seu próprio povo, sua própria cultura. E o fez por meio da difusão de idéias e da imposição de práticas oriundas das elites (econômicas, políticas, mas também intelectuais) do país, que sempre olharam com desprezo tudo o que constitui sinônimo de “povo” e de “popular” no Brasil. Desprezo que se traduz, da fundação colonial até hoje, numa espécie de mal-estar identitário de nossas elites com relação à sua própria cultura. Mal-estar que estas mesmas elites tentam transmitir ao corpo social brasileiro inteiro, e o conseguindo satisfatoriamente. Tendo a TV e a mídia impressa nas mãos, foram capazes de obter de todos nós expressões do tipo “gosto popular”, “hábito popular” ou “popularizado”, “vulgarizado” quando nos referimos a bens que acreditamos distinguir como adaptados ao nível “dos de baixo”, dirigidos à “gente do povo” ou a atitudes que consideramos “sem requinte”, “sem fineza”, “sem elegância” – crêem alguns, desprovidas de “civilidade”, “urbanidade”.


Na história brasileira, o desprezo pelo povo e pelo popular começa com a chegada do colonizador europeu. Começa com a invalidação da cultura primitiva indígena que nos deu origem. Das práticas de sexo e acasalamento aos hábitos alimentares, passando pelos modos de morar e de trabalhar, nossos indígenas foram invalidados pelo colonizador como amorais, preguiçosos, perigosos, sujos. O desprezo prosseguiu com a invalidação do mestiço brasileiro, nascido da miscigenação de indígenas, europeus e africanos – matriz do homem brasileiro. Homem que, desde o primeiro mameluco, permaneceu mestiço no corpo e na alma (como sentenciou Gilberto Freyre, para desespero das elites que se imaginam “puras de mistura racial”, “brancas”, de “origem européia”).


Não apenas as misturas que deram origem ao corpo mestiço do brasileiro foram condenadas pelo elitismo e racismo de nossas elites. Nossos costumes de misturar códigos,

idéias, valores, espaços, posições sociais, gentes – nossos costumes de juntar o que em outras paragens não se junta – também conhecem, até aqui, toda uma longa história de invalidação. Costumes que nos estruturam como uma cultura de mestiçagens. Cultura de misturas na cozinha, na religião, nas artes, no sexo, nas relações interpessoais, na política, na filosofia, na ciência. Mas mestiçagens estigmatizadas como vícios, maus costumes, patologias sociais de origem popular. Mesmo os intelectuais de esquerda do país – e até hoje – não estão menos implicados nessa condenação elitista de nossos costumes. A sempiterna suspeita de que nossos costumes inviabilizam a modernidade, o desenvolvimento.


O governo que inicia pode fazer a sociedade brasileira pensar sobre essa longa história de invalidação do povo brasileiro e de sua cultura – nossa cultura. A começar do próprio fato de que o presidente da República é um ex-retirante nordestino, menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, ex-torneiro mecânico, e alguns de seus aliados de partido e ministros são ex-engraxates de rua, ex-empregadas domésticas, ex-seringueiros, gente negra, Silva, gente com a cara do Brasil que foi desprezado até aqui. O reencontro da sociedade brasileira consigo mesma passa, pois, pelo Brasil assumir sua identidade de nação mestiça no corpo e na alma.


Fazer a sociedade brasileira pensar sobre o tema é tarefa do novo governo e ele já dá sinais de que pretende fazê-lo. O tema das mestiçagens aparece no programa de cultura elaborado pela equipe anterior a indicação do atual ministro da cultura, aparece no discurso de posse, na fala de ministros. E a reflexão sobre o assunto pode ser feita de muitas maneiras, inclusive quando se fala e se formula programas para o combate à fome. Os mais pobres, os famintos, sempre estiveram aí como parte daqueles a quem um imaginário cruel de preconceitos elitistas e racistas representou como “preguiçosos”, “incultos”, merecendo o

abandono e a fome.


Assim, o novo governo tem em suas mãos o desafio de pôr o Brasil no divã, principalmente nossas elites, e fazer com que todos da nação assumam a cara que é a nossa, o que somos, contribuindo com uma educação que ajude a romper colonialismos de todos os tipos (inclusive os internos) e que promova a auto-estima de um povo marcado, até aqui, pela violência do preconceito elitista e racista.


(Publicado SOUSA FILHO, A. . O Brasil no divã. Diário de Natal, Natal/RN, p. 2 - 2, 09 jan. 2003.)

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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