top of page

Intervindo no Debate Político-Público

MESTIÇAGENS OU BARBÁRIE

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 26 de mar. de 2008
  • 7 min de leitura

Alípio de Sousa Filho



Todos lembram: após o destruidor 11 de setembro de 2001, os poderes dos Estados Unidos puseram em ação sua poderosa máquina de guerra. Traduzida por George Bush como uma “monumental batalha do bem contra o mal”, a operação de guerra americana transformou-se em verdadeiras Cruzadas dos tempos atuais. Como nos tempos medievais, as Novas Cruzadas também produziram as figuras dos hereges, infiéis, endemoninhados, bárbaros. Os poderes americanos também anunciaram para o mundo seu fundamentalismo: não compartilhar da fé americana era estar contra o bem, contra o mundo. Disseram também, “contra Deus” – este o Absoluto deus judaico-cristão. Nenhum outro, claro. É assim no monoteísmo fundamentalista: tudo é único. Só há um deus: o deus único do fundamentalismo. Só há uma crença possível: a crença do fundamentalista. Só há uma forma possível de vida: economia, política, direitos, moral, sexualidade, tudo deve se conformar ao modelo único do monoteísmo fundamentalista.


Novamente na história, aqui como farsa!, repetiu-se a perseguição aos árabes. Como no tempo das cruzadas da cristandade medieval, os árabes transformaram-se rápido no bode expiatório para a justificação dos projetos imperialistas dos poderes americanos. Todos nós também lembramos o que se seguiu aos fatos do 11 de setembro: prisões arbitrárias, inquéritos forçados, vigilância da vida privada, entre outros abusos, em “razão” da origem árabe e mesmo apenas da “suspeita” dessa origem em diversos casos de residentes ou visitantes nos Estados Unidos e mesmo alhures.


Mas, aqui seja dito, antes mesmo do 11 de setembro, o fundamentalismo americano já recusava a diferença, assim como já ameaçava a própria diversidade cultural e étnica existente na humanidade. Também seja dito, algo comum a todo fundamentalismo e a todo imperialismo, não se constituindo numa particularidade americana. Na história humana, todos os impérios agiram assim: procurando domesticar ou mesmo destruindo o outro, a diferença. De efeito simbólico mais devastador que a própria destruição material que causou – tratou-se de golpe imperdoável no narcisismo dos poderes americanos –, o 11 de setembro foi transformado em álibi para antiga pretensão desses poderes em espalharem seu império por todo o planeta. Se já agiam livremente com seu poder de vida e morte sobre o planeta, as forças econômicas, políticas e militares americanas passaram a ter no “combate ao terrorismo” a desculpa perfeita para seus empreendimentos imperialistas. Após o Afeganistão, agora planejam atacar o Iraque – e novamente a desculpa é o “combate às destruidoras armas químicas produzidas pelo governo daquele país”. Graças ao poder dos meios de comunicação com os quais contam para a difusão de suas idéias, os poderes americanos conseguem persuadir boa parte do mundo de que sua guerra imperialista é a guerra de todos, e tem conseguido transformar sua histeria particular contra o que chamam de “terrorismo árabe” em histeria coletiva.


E como é sempre o caso de toda histeria coletiva (veja-se os exemplos atuais da histeria contra a chamada violência, contra a pedofilia, transformando qualquer um em “monstro” e por força da primeira acusação!), a histeria contra o “terrorismo árabe”, que se seguiu ao 11 de setembro, produziu rápido seus Cruzados. E conseguiu adeptos também entre gente da classe média brasileira. E o fato não deve surpreender. Observe-se aqui, uma camada que sempre viveu o seu mal-estar identitário por suas origens étnica e de classe. Nossa gente de classe média e nossas pretensas elites não estão sempre buscando uma origem “européia”, “nobre”? Não se queixam de sua origem portuguesa, árabe, indígena, africana?! Como o racismo é filho da ignorância, no clímax da histeria anti-terror, brasileiros fizeram um indiano descer, em Paris, de um avião com destino ao Brasil, acreditando se tratar de “árabe”. Gente que acreditava estar contribuindo com a “nobre causa americana” de combate ao “terrorismo”.


Embora incompatível com a sociedade mestiça que somos, a atitude desses brasileiros, em Paris, – atitude típica de gente da classe média autoritária e conservadora existente no nosso país – resulta de racismo já existente na mentalidade das chamadas “elites brasileiras”. Não fosse o mal-estar identitário dessas elites relativamente ao fato de que somos todos mestiços, inclusive a gente dessa própria camada social que se representa como “branca”, talvez o racismo não tivesse existência no Brasil. Somos uma sociedade mestiça e uma cultura de mestiçagens, isto é, praticante de misturas, fusões, sincretismos, cuja origem, como se sabe, encontra-se na história de nossa fundação, que nos transformou em miscigenados no corpo e nos nossos modos de ser. Nossos modos de lidar com o outro, nossos modos de juntar o que em outras paragens não se junta – e de maneira fácil, simples –, tudo isso está assentado na estrutura antropológica das mestiçagens que nos distinguem. Estrutura de base que, dentre outras coisas, produz nosso trato amável, nossa tendência à aproximação fácil do estranho, do outro. Mas é verdadeiro que, ao longo da história, fomos mil vezes invalidados justamente por nossos práticas de mestiçagens. Até hoje, nossas pretensas elites intelectuais, políticas e econômicas não cessaram de tentar corrigir ou eliminar nossas mestiçagens, vistas como “anomalias”, “vícios”, “males de origem”. Trata-se sempre do horror elitista a misturar códigos, estilos, coisas, gentes. Prática vista como própria do povo, prática popular.


Mas, não bastasse a invalidação de nossas mestiçagens pelas chamadas elites do próprio país, os poderes americanos, na sua histeria antiterrorismo atual, também resolveram julgar nossos costumes. Acusando as autoridades brasileiras de não cuidarem do combate ao terrorismo e afirmando ser o Brasil um esconderijo fácil para terroristas, explicam a razão desse “desleixo”: “até a maneira de ser dos brasileiros facilita a presença de terroristas no país. (...) Quando alguém se muda para uma cidade do país, especialmente no interior, ninguém quer saber o passado do novo vizinho, que, uma semana depois, já está sendo convidado para tomar um café na cozinha de alguém. É o paraíso para quem quer se esconder.” Como se pode ver, o imperialismo pretende dizer como devemos ser. Somos os bárbaros mestiços que, dados a mestiçagens, nos misturamos muito facilmente, rapidamente fazemos amigos, e, com isso, facilitamos o terrorismo. Antes, nos nossos começos, diziam que nossas mestiçagens facilitavam a “promiscuidade”, a “degenerescência moral”, a “desordem”. Esse foi o discurso do administrador colonial, dos missionários cristãos em terras brasileiras e de toda uma tradição teórica que se encarregou de “interpretar” o Brasil e os brasileiros, ao mesmo tempo em que reprovava nossos hábitos calcados nas nossas práticas de mestiçagens – tradição que se inicia com Capistrano de Abreu, passa por Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e chega até as ciências sociais universitárias de hoje que continuam a reproduzir os preconceitos elitistas e racistas desses autores.


Porém, embora muito já se tenha maldito o Brasil por suas mestiçagens, e ainda se continue a fazê-lo, na ciência e na política, dentro e fora do país, não há razões para vergonha. Nossa tendência a praticar mestiçagens deve ser exaltada. Ela pode ser arma contra vários preconceitos e racismos. Em tempos de Cruzadas racistas, as mestiçagens brasileiras podem servir de paradigma: modo de operar de uma cultura que é capaz de incorporar e harmonizar as diferenças e os diferentes, embora desigualdades por resolver. Contra os fundamentalismos monoteístas que crêem na vida em via única, é preciso afirmar o politeísmo de valores que se encontra num modelo cultural como o brasileiro, modelo construído sobre uma estrutura antropológica cuja lógica mais íntima são as diversas mestiçagens que praticamos, essencialmente contrárias a todo monoteísmo enclausurante. Ainda que seja também a fonte do desespero de nossas pretensas elites (econômicas, políticas, mas também intelectuais) por não verem se afirmar no país a “modernidade”, a “urbanidade”, a “civilidade”. Os hábitos de mestiçagens praticados pelo “povo” nos conservariam “arcaicos”, “atrasados”. Curioso é ver intelectuais de esquerda adotando essa mesma interpretação, tornando-a a ciência social do país, sem que se dêem conta que estão apenas reproduzindo paradigmas do colonizador, assim como reproduzindo as visões burguesas da vida e do mundo.


Os poderes americanos procuraram legitimar sua guerra difundindo a ideia de que se tratou – e de que se trata ainda – de um combate entre “civilizados” e “bárbaros”, ocidente “moderno” contra o oriente “arcaico”, luta do “bem” contra o “mal”. A ideia de guerra entre “civilizações”, entre “ocidente” e “oriente” é inaceitável. Trata-se aí de ideologia mascarando interesses muitos precisos da dominação: o que era – e é – apenas uma guerra particular (americana) aparece como guerra universal (de todos). Após todas as conquistas do pensamento científico contemporâneo, com destaque para a antropologia, não se pode aceitar que se volte a falar em “povos bárbaros”, “religiões do mal”, “civilizado”, atrasado”, etc. Assim como não se pode aceitar que se queira julgar toda uma civilização ou todo um povo por apenas uma de suas partes, invalidar toda uma cultura por apenas uma única de suas práticas.


A barbárie de que se pode falar aqui é outra. Não se pode mais aceitar os fundamentalismos monoteístas, seja na economia, na política, na moral, nos costumes, destruindo ou invalidando culturas, povos, pessoas. Barbárie assassina que, não recebendo esse nome, aparece como “emancipação”, “civilização”, “globalização”, “modernidade”. Barbárie que corresponde à própria ação dos impérios na história sempre contra “bárbaros”: gregos, romanos, portugueses, britânicos, franceses... na barbárie de seus atos imperialistas agiram contra “bárbaros” – há sempre um “bárbaro” por perto na história. Agora são os americanos e os “bárbaros” do império capitalista ocidental. Que é esse bárbaro do discurso da barbárie imperialista de todos os tempos?: o outro do outro, o impensável em sua diferença, a discordância, o conflito, a variação, o heterogêneo, a multiplicidade, os nomadismos do desejo, a errância do pensamento, a negação da homogeneidade, a revolta contra a domesticação, a crítica. Nada disso os impérios (econômicos, políticos, morais, religiosos) admitem. E é por isso que, em todos os tempos históricos, “bárbaros”, “infiéis”, “bruxas”, “monstros”, “pervertidos”, “invertidos” foram perseguidos.


No século passado, os socialistas acreditaram que, se o socialismo não saísse vitorioso, cairíamos na barbárie (na destruição, na violência): era o “socialismo ou barbárie”. Se pretende anunciar o futuro, o século XXI deverá ser capaz de construir uma nova compreensão da realidade social e da vida humana, em que se difunda a aceitação da diferença, da convivência com o outro, sem a pretensão de homogeneidade, de domesticação da diversidade, da pluralidade, sem as hierarquizações que oprimem – século que será mestiço ou não será. É claro, para acontecer, isso dependerá de transformações nos sistemas de sociedades nos quais existimos, mas exige também, de cada um de nós, uma parcela de contribuição com mudanças de atitudes que começam com a crítica e o abandono de conceitos e práticas que, sendo apenas objetivações de convenções sociais, são o sustento da dominação nas várias formas em que esta se concretiza. Sem descuidar da crítica à dominação como esta se realiza em cada cultura, terminar com a ideia ideológica do “bárbaro”, do “incivilizado”, do “atrasado” será um bom começo. Não temer as misturas humanas – misturas de gente, culturas, códigos, idéias, economias, sexualidades, etc. – é outra boa medida. Aqui, já para o presente, podemos pensar: “mestiçagens ou barbárie”.


Publicado em SOUSA FILHO, A. . Mestiçagens ou barbárie. Revista Odisséia, Natal/RN, v. 7, p. 7-10, 2001. EdUFRN

 
 
 

Commentaires


Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

© 2018, Sabrina Barbosa/Alipio DeSousa Filho.

  • Facebook Clean Grey
  • Twitter Clean Grey
  • LinkedIn Clean Grey
bottom of page