MESTIÇAGENS OU BARBÁRIE 2
- Alipio DeSousa
- 19 de mai. de 2008
- 3 min de leitura
Alípio de Sousa Filho
Sociólogo. Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em sociologia
pela Sorbonne (Paris V). Autor de Les métissages brésiliens (Paris, PUS, 2003).

Começarei pelo final: no Brasil, ou salvamos nossa cultura de mestiçagens ou estaremos perdidos. No país em que a capacidade de realizar fusões de diferenças, diversidades é um verdadeiro patrimônio, políticas de separação, de “distinções raciais” são uma ameaça que deve ser evitada. É bem verdade que somos igualmente uma sociedade que pratica inúmeras exclusões, discriminações. E esse é paradoxo incômodo e algo a ser superado.
A miscigenação humana ocorrida na nossa história nos tornou um povo de mestiços e, lembrando Gilberto Freire, “no corpo e na alma”. Somos mestiços biológica e culturalmente. Diferentemente do que ocorre em outras paisagens culturais, misturamos tudo sem pudor. Longe de sermos animados por uma lógica da separação, somos praticantes de amplas misturas, somos um caldeirão de mestiçagens. Estas configuram uma estrutura antropológica fundante e estruturante de nossa cultura.
A institucionalização da “distinção racial”, conforme pretendida hoje por alguns setores da sociedade brasileira, representa uma ameaça a nossa lógica cultural. Enganam-se aqueles que enxergam nossas mestiçagens como uma construção ideológica que visaria negar principalmente a discriminação imposta aos negros. Reconhecer as mestiçagens (entendidas aqui como práticas culturais) como uma lógica que define a própria sociedade brasileira é dar um passo na direção contrária às separações racistas e outras discriminações. Nossas mestiçagens podem nos salvar de todo racismo, incluindo o praticado contra os negros brasileiros.
Nossos modos de lidar com o outro, nossos modos de juntar o que em outras paragens não se junta – e de maneira fácil, simples –, tudo isso está assentado nas mestiçagens que nos distinguem, que funcionam como uma espécie de estrutura antropológica de base. Mas é verdadeiro que, ao longo da história, fomos mil vezes invalidados por nossas práticas de misturas, hibridismos, sincretismos. Até hoje, não se cessa de tentar corrigir ou eliminar nossas mestiçagens, vistas como “males de origem”. Cabe ressaltar, contudo, que nesse desprezo pelas mestiçagens está o sempiterno horror elitista a misturar códigos, estilos, coisas, gentes. Práticas vistas como própria do povo, coisa popular. A recusa das nossas mestiçagens reúne racismo e elitismo num só ato.
Nos nossos começos, diziam que nossas mestiçagens facilitavam a “promiscuidade”, a “degenerescência moral”, a “desordem”. Tal era o discurso do administrador colonial, dos missionários cristãos e dos viajantes europeus em terras brasileiras. Passou a ser também o discurso de toda uma tradição teórica que se encarregou de interpretar o Brasil, reprovando nossos hábitos de mestiçagens como fonte do que se acreditou ser nosso “atraso”, ausência de modernidade, urbanidade, civilidade. Revisitar diários de viajantes, ensaios clássicos, teses – empreendendo uma arqueologia das representações do mestiço e das mestiçagens no Brasil – torna possível enxergar um espécie de ventriloquismo do intérprete brasileiro, ao reproduzir os termos do colonizador europeu de desaprovação, desconfiança e pessimismo quanto se tratou de falar de nossos hábitos, costumes. Uma interpretação do país que ajudou a construir o longo mal-estar identitário de nossas chamadas elites com relação às mestiçagens, incluindo o fato de se representarem como “brancas”. Não fosse esse mal-estar identitário ter sido transferido para toda a sociedade, talvez o racismo não tivesse existência no Brasil.
Embora muito já se tenha maldito o Brasil por suas mestiçagens, e ainda se continue a fazê-lo, na ciência e na política, dentro e fora do país, não há razões para vergonha. Nossa tendência a praticar mestiçagens deve ser exaltada. Ela pode ser arma contra vários preconceitos e racismos. Em tempos de Cruzadas racistas, fundamentalismos religiosos, políticas anti-migrações, ódios raciais, em diversas partes no mundo, as mestiçagens brasileiras podem servir de paradigma, embora desigualdades internas por resolver.
No século passado, os socialistas acreditaram que, se o socialismo não saísse vitorioso, cairíamos na barbárie: era o “socialismo ou barbárie”. Se pretende anunciar o futuro, o século XXI deverá ser capaz de construir uma nova compreensão da realidade social e da vida humana, em que se difunda a aceitação e a incorporação de todas as diferenças, de todas as diversidades, da convivência com o outro, mas sem a pretensão de separação, distinção, classificação. No fundo, pretensão de domesticação da pluralidade. E não se trata aqui de falar de “tolerância”, como muito se tem dito, mas em assimilação da diferença, dos diferentes, das diversidades. Não temer as misturas humanas – misturas de gente, culturas, códigos, idéias, economias, sexualidades etc. – é um bom começo. O século XXI será mestiço ou não será: mestiçagens ou barbárie!
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