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Intervindo no Debate Político-Público

ELOGIO DAS MESTIÇAGENS

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 26 de mar. de 2008
  • 3 min de leitura

Alípio de Sousa Filho

- professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN




A idéia de cotas nas universidades tem origem no trabalho político de importantes ativistas negros com funções de governo hoje. Pretendendo chamar atenção para o problema do racismo, acreditaram que poderiam fazê-lo começando com propostas de políticas de Estado de inclusão social dos negros, incluindo a educação, no bojo do que surge também o Estatuto da Igualdade Racial. Não é por outra razão que, inicialmente, apenas se falou de

“cotas raciais” e, posteriormente, cotas para egressos da escola pública. No afã da ideia, questões decisivas são ignoradas. A adoção de cotas nas universidades, seja para alunos egressos da escola pública, seja para negros, não pode ser implementada sem a discussão de um problema que não podemos continuar ignorando: é a má qualidade dos ensinos fundamental e médio públicos que estes freqüentam que se torna um obstáculo para que possam competir, de igual para igual com os demais, nos exames para ingresso no ensino superior público, de melhor qualidade e mais concorrido. Considerando-se as desigualdades sociais, a democratização do acesso à universidade somente será resolvida se Estado e sociedade decidirem melhorar a qualidade da escola básica pública. À universidade não cabe modificar seus modelos de seleção para dar abrigo à má escola básica pública.


Outra questão ignorada é o equívoco da ideia de raça e o prejuízo que encerra ao ser aplicada a um país cujo maior patrimônio são suas mestiçagens: a miscigenação de diversas etnias e tipos humanos e nossas práticas culturais de fusões, misturas. A ideia de raça é uma invenção do racismo. Pensar que existem “raças humanas” é fruto de uma longa história de colonização do pensamento humano por categorias que se impõem como verdades e que não questionamos. E não importa que diversas ciências tenham se envolvido com a ideia. Entre humanos, somente se torna possível falar de etnias, povos, culturas. No Ocidente moderno, a ideia de raça é uma invenção do colonialismo, a partir do s. XVI, com a Europa dominando diferentes porções do planeta e suas populações. A miscigenação ocorrida entre europeus e outros povos foi vista como "cruzamentos" entre "raças". A miscigenação já existente entre europeus, todavia, não era vista como “mistura de raças”. Apenas a partir da era colonial, produziu-se uma consciência sobre as "misturas de raças" e passou-se a considerar as "raças" na organização interna das sociedades. Deve-se saber, brancos, negros, amarelos são tipos antropológicos e não raças. E não há tipos humanos puros. Pelos genes, somos todos mestiços, e descendemos todos de uma única população “mãe” de sobreviventes do paleolítico.


No Brasil, as misturas étnicas nos tornaram um povo de mestiços, e como dizia Gilberto Freire: “no corpo e na alma”. Somos mestiços biológica e culturalmente. Sem pudor, misturamos tudo. Longe de sermos animados por uma lógica da separação, somos praticantes de amplas misturas, somos um caldeirão de mestiçagens. Estas são um elemento estruturante da nossa cultura. A institucionalização da separação racial (por meio de “cotas raciais” ou como propõe o estúpido Estatuto da Igualdade Racial) representa uma ameaça a nossa lógica cultural. Curiosamente, ativistas negros vêem as nossas mestiçagens (e sua aceitação como um bem a ser preservado) como uma construção que visaria negar a discriminação imposta aos negros. Engano. Reconhecer as mestiçagens como uma lógica cultural é dar um passo na direção contrária às separações racistas. Cotas “raciais” trazem embutida a recusa de nossas mestiçagens, que podem nos salvar de todo racismo, incluindo o praticado contra os negros, e preservado na ideia segundo a qual eles constituem uma “raça” à parte. Abaixo o racismo!


Publicado no Diário de Natal, edição do dia 30 de julho de 2006, Caderno Cidades, p. 3

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

© 2018, Sabrina Barbosa/Alipio DeSousa Filho.

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