CIÊNCIA LIVRE
- Alipio DeSousa
- 26 de mar. de 2008
- 3 min de leitura
Alípio de Sousa Filho
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN

O que se desenrola no STF a propósito das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas constitui uma demonstração do atraso a que o país é submetido ao tornar-se refém das posições conservadoras de certos setores da sociedade brasileira. Pressões religiosas e, em particular, da Igreja Católica, o posicionamento conservador do Ministro que pediu vista do processo e o posicionamento conservador do autor da Ação de Inconstitucionalidade contra as pesquisas tornaram possível a suspensão de decisão imediata que coloca(ria) o Brasil em nível avançado da pesquisa científica.
As pesquisas com células-tronco embrionárias humanas fazem parte dos avanços da ciência contemporânea. Como tem sido esclarecido, doenças degenerativas como câncer, mal de Parkinson, doenças neuromusculares, entre outras, podem conhecer tratamentos ou curas a partir das descobertas com essas pesquisas. Apenas isso é suficiente para justificar a realização das pesquisas do ponto de vista ético-moral.
Contra os argumentos dos cientistas, segmentos religiosos tentam impor o argumento falacioso do embrião como vida (como se o ser humano não tivesse o direito de intervir na criação, modificação e interrupção da vida). Esses segmentos não pretendem o esclarecimento científico ou filosófico do assunto, mas plantar confusões e sustentar crenças sem fundamento em população majoritariamente dominada por concepções religiosas atrasadas. Considerando a complexidade da vida humana, as circunstâncias adversas da vida individual e coletiva e as desigualdades conservadas pelos sistemas de sociedade que são os nossos, soa como um despropósito argumentar que um embrião é já uma pessoa. Com o tipo de sociedade que mantemos até aqui, há muito mais pessoas vivas perguntando-se a si próprias se são, de fato, pessoas humanas, pelo modo como estão sendo tratadas socialmente, pela maneira como vivem. Este é fato mais importante (mas desprezado) que decidir pela idéia que um embrião é já uma pessoa. Se formos mais longe, com o que sugere a antropologia, mesmo depois do nascimento, o ser humano somente é pessoa depois da socialização pela cultura.
Os estudos científicos e os usos da ciência não podem ser impedidos sob pretextos ético-morais que, de fato, ocultam posições religiosas. O Estado deve garantir as condições para que a ciência seja permanentemente livre. O Estado moderno preconiza a exclusão das igrejas do exercício do poder político e administrativo. Não se pode admitir a interferência de entendimentos religiosos para o estabelecimento de leis no tocante à prática da ciência.
A liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas interessa a todos nós que nos ocupamos com a produção e o ensino do conhecimento teóricofilosófico-científico livre. E que não se ataque a ciência com argumentos distorcidos ou ignorantes. Acusa-se a defesa incondicional da ciência de ignorar os riscos de certas pesquisas científicas, e fala-se de objetivos escusos de estudos científicos. O uso pervertido de conhecimento científico para fins totalitários e desumanos não é um capítulo da história da ciência como tal, mas capítulo da história do poder, incluindo os usos que este procura fazer da ciência. Contra aqueles (e mesmo nas universidades) que atacam a ciência, responsabilizando-a por males que nada tem a ver com o que a ciência é e sua vocação intrínseca, torna-se necessário repetir o que Carl Sagan escreveu: se a ciência tem limitações que são próprias a todo esforço humano de pensar, ela é o melhor que, como humanidade, inventamos. Aumentamos a vida, combatemos doenças, enriquecemos nosso conhecimento sobre a realidade. É também um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. É uma arma contra superstições sem fundamento, contra a religião mal aplicada a assuntos que não lhe dizem respeito.
(Publicado em Sousa Filho, Alípio. Ciência Livre. Diario de Natal, Natal, RN, p. 2 - 2, 26 março 2007)
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