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Intervindo no Debate Político-Público

ATRASO E PROVINCIANISMO

  • Foto do escritor: Alipio DeSousa
    Alipio DeSousa
  • 26 de mar. de 2008
  • 5 min de leitura

Alípio de Sousa Filho

– professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN



A aprovação de título de persona non grata aos antropólogos portugueses Fernando Bessa e Octávio Sacramento pela Câmara de Vereadores de Natal merece o repúdio de todos nós que realizamos pesquisas e estudos nas universidades do RN e do país. Numa circunstância em que, em todas as regiões do país, parlamentares são julgados por ações de quebra de decoro (no essencial, um eufemismo para ações que merecem outro nome), a decisão dos vereadores da cidade aprofunda em todos nós, que temos como ocupação principal a produção do conhecimento teórico-científico, o sentimento de que nossa população elege mesmo muito mal os seus representantes.


O estudo dos antropólogos portugueses é mais um entre tantos realizados por pesquisadores no mundo inteiro, que chegam às mesmas conclusões, e é estudo que segue os padrões do trabalho científico, que somente pode ser julgado por aqueles que conhecem e aplicam os parâmetros próprios ao campo em questão. O julgamento moralista de posições conservadoras e provincianas não pode pretender ser um ponto de vista para a análise do que se faz em ciência, sob pena de rebaixarmos o trabalho nas universidades e no campo científico em geral a valores sociais e morais que, pretensamente representando interesses da sociedade, mas, de fato, expressando pontos de vista retrógrados, podem rebaixar toda a tarefa para a qual a ciência sempre esteve dedicada: o conhecimento da realidade, de modo livre e independente, sem o constrangimento de poderes de qualquer tipo.


A discussão proposta pelo estudo dos antropólogos sobre a realidade da prostituição em nossa cidade, desconstruindo mitos sustentados até por gente que pretende estar fazendo o “bem” para a cidade, já vinha sendo desenvolvida por mim próprio e pelo professor Edmilson Lopes Júnior, do Departamento de Ciências Sociais da UFRN, ao questionarmos, em mesas-redondas e palestras, as atrapalhadas de diversos setores da cidade (em todas as esferas: governo, empresários, Ongs bem intencionadas) ao tratarem do chamado “turismo sexual”. Estávamos certos ao adiantar, em diversas ocasiões, que o furor conservador em torno do tal “turismo sexual” terminaria por servir a posições moralistas inquisitoriais do tipo que vemos agora concretizada na ação dos vereadores da cidade. Não faz muito tempo, vimos outra ação inusitada de cancelamento de um vôo turístico holandês, pelas autoridades da área, pela “suspeita” de que se trataria de um vôo “tipicamente destinado ao turismo sexual”. O vôo foi caracterizado como “constituído de homens jovens e solteiros”, como se ser solteiro constituísse algum crime. Ora, se as autoridades do RN, assim como os empresários locais, insistirem com essa política, logo mais estaremos assistindo ao cancelamento de “vôo de gays”, “vôos de lésbicas”, “vôos de voyeurs”, “vôos de sadomasoquistas”, “vôo de mulheres”, e todos os vôos que a imaginação conservadora

resolver criar, com a justificativa de que, nas terras santas potiguares, apenas o tal do “turismo familiar” terá lugar. Uma invenção conservadora e provinciana que, se levada às suas últimas conseqüências, acabará com o turismo no RN em pouco tempo. Conhecemos os benefícios do turismo e um deles que se pode destacar é o efeito cultural (ao quebrar preconceitos, provincianismos, conservadorismos) produzido pelo encontro de pessoas de diversas origens, ao trazer a experiência da diversidade de línguas, costumes, crenças, valores, no que se inclui (e sempre se incluiu na história humana) o encontro sexual. Não se conhece, na história, que o ser humano tenha, em qualquer época, realizado viagens, já quando utilizou pela primeira vez uma canoa, deixando o sexo bem trancado em casa. Dentre outras coisas, as viagens tornam possível o encontro sexual e esse encontro não pode ser suprimido pela idéia moralista de que avilta os moradores do lugar. Propor excluir o sexo das viagens, além de um cerceamento à liberdade individual, torna-se uma proposição contrária ao sentido humano da errância e da aventura do qual se nutre o imaginário das viagens. Como sabemos, nós os antropólogos e sociólogos, muito do conhecimento de uma sociedade ocorre pelo conhecimento da sexualidade que nela se pratica. Para o viajante não é diferente.


A pressão sobre empresários de turismo para que cedam ao furor conservador e provinciano tem partido de diversos setores e tem contado com a cumplicidade da imprensa local, que, nos últimos anos, não tem poupado esforço no sentido de caracterizar como “invasor” o estrangeiro que vem visitar ou morar na cidade. Manchetes do tipo “Ponta Negra não é mais do natalense”, como uma espécie de lamento e reclamação pela presença dos estrangeiros naquela praia, assim como a caracterização do lugar como sendo um tal “ponto de prostituição”, é bobagem provinciana que não se cogita em outras partes do mundo. Não ouvi ou li nos jornais franceses, durante os anos em que estudei na Sorbonne, que “a avenida Champs-Elysées não é mais dos parisienses”, assim como imagino que, nos Estados Unidos, não se diz que “Nova Iorque não é mais dos nova-iorquinos”.


O que, hoje, em todo o mundo, os estudos apontam é que aquilo que se chama ainda de prostituição deve ser encarado como um trabalho e como tal deve ser respeitado e regulamentado (é esse o sentido do Projeto Gabeira), evitando-se a estigmatização e a marginalização de mulheres e homens chamados de prostitutas e michês. Marginalização que torna possível a ação clandestina de criminosos, a chantagem policial ou a ação filantrópica hipócrita (agora travestida da ideologia do “politicamente correto” pela ação de certas Ongs que, não sabendo o que estão fazendo, concorrem para o aumento do conservadorismo social). Ora, estamos aqui tratando da sexualidade entre adultos livres, nacionais ou estrangeiros, portanto, não se podendo confundir o que daí decorre com a ação criminosa da exploração de mulheres, menores, tráfico, cárcere para o sexo, etc. Práticas que devem ser combatidas pelo Estado.


Embora se possa discutir que, em alguns casos, homens e mulheres que praticam o que se chama de prostituição o façam por força de circunstâncias econômicas, deve-se saber que um grande número de outros entende o que faz como um trabalho (e com dignidade). A complexidade do assunto merece amplo debate, mas não pode ser tratado com a intolerância da ignorância servil ao moralismo e ao preconceito. Ressalve-se aqui que boa parte do que se chama equivocadamente de prostituição e que tem sido vinculado ao chamado “turismo sexual” nada mais é do que o encontro sexual de homens e mulheres adultos livres, em pleno exercício de suas liberdades. Em alguns casos, encontros que têm transformado para melhor a vida das pessoas.


É falso que a Câmara tenha “reagido em nome da população de Natal” e é falso que “a presença dos pesquisadores gera insatisfação à cidade”. Natal, além de seus vereadores, conta com um amplo grupo de intelectuais, pesquisadores, estudiosos, vinculados às universidades ou não, que, orientados pela inteligência e pela razão livre, não admitem decisões como a que a Câmara tomou. Para todos nós, ocupados em fazer existir a universidade no RN, os antropólogos portugueses, como outros, cujo trabalho seja o de produzir conhecimento crítico, são pessoas bem-vindas, pessoas bem-aceitas.


(Publicado em SOUSA FILHO, A. . Atraso e Provincianismo. Diário de Natal, Natal, p. 14 - 14, 25 set. 2005.)

 
 
 

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

© 2018, Sabrina Barbosa/Alipio DeSousa Filho.

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